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Democracia na América Latina

No século XIX, após 300 anos de colonialismo ibérico, a América Latina viveu um período de intensa conturbação política, muitos fatores contribuíram para que um processo de independência se disseminasse pelo continente. Tanto a monarquia espanhola como a portuguesa haviam entrado em declínio, o sistema colonial no qual se baseava o extrativismo mercantilista de ambas se deteriorava, o iluminismo surgido na Europa no século anterior em oposição ao absolutismo e que havia alimentado as revoluções americana (1776) e francesa (1789) chega à América Latina e ajuda a fomentar as lutas pela independência. Outros fatos que contribuíram para a independência latino-americana foram as guerras napoleônicas e o crescente poderio econômico, militar e político da Inglaterra e também dos EUA, que em 1823 através da “Doutrina Monroe[1]” apregoa o jargão “a América para os americanos”, distanciando ainda mais as colônias americanas do domínio das metrópoles européias, fragilizando de modo irreversível o pacto colonial no qual se sustentava todo o sistema de dominação-exploração da Espanha e de Portugal no continente. Neste momento as primeiras democracias nascentes (EUA e Inglaterra à frente) já se estabilizavam, enquanto que na América Latina a adoção deste sistema político ainda estava distante. Mas o caminho para a consolidação da emancipação política latino-americana estava aberto, e no primeiro quarto do século XIX praticamente todo o domínio estrangeiro direto sobre continente[2] deixou de existir. Depois de proclamada a independência, os países recém formados adotaram regimes diversos, o Brasil se constituiu uma monarquia, o México um império, e a grande maioria dos países formaram uma República com uma elite oligárquica rural dominante ou um regime ditatorial. Seja pela fragilidade de seus regimes ou por insuficiência econômica, a região passou a sofrer forte influência americana e inglesa, que não raramente interferiam nos assuntos internos dos países latino-americanos, esta predominância substituía o domínio colonial espanhol-português por um imperialismo econômico anglo-norte-americano. Esta situação aliada à incapacidade das elites locais de organizar um sistema político estável e capaz de superar os graves problemas sociais de cada país, propiciaram o surgimento de inúmeros conflitos e contribuíram para o descompasso histórico da América Latina em relação à Europa e à América do Norte. Somente no final de 1800 e no início do século XX as experiências democráticas latino-americanas se ampliaram[3]. A maioria dos países do continente, inclusive os mais proeminentes, adotaram um conjunto de procedimentos para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas que compreendiam basicamente a organização tripartite de Poder, (Legislativo, Executivo e Judiciário); eleição mediante escrutínio para os cargos de parlamentares e administradores; ampliação do sufrágio e igualdade de voto entre os cidadãos aptos a participarem dos pleitos; liberdade de organização partidária e posicionamento ideológico, entre outros[4]. Podemos considerar que a região passava por uma onda democrática, fruto em certa medida de pressões americanas e inglesas, cujos interesses comerciais corriam o risco de não se realizarem satisfatoriamente em países dominados pela desorganização política e social. Pode-se afirmar que as democracias latino-americanas do início do século foram caracterizadas por dois fatores, o liberalismo e o formalismo. O primeiro atendia às pretensões dos capitalistas norte-americanos e britânicos, que viam no continente grandes oportunidades de lucro. Havia muitas e imensas reservas naturais para serem exploradas, as crescentes sociedades eram potenciais consumidores de seus produtos manufaturados, os governos locais incapazes de investir na produção se abriram para o capital estrangeiro e estabeleceram fortes laços comerciais com estes dois países, e com outros de economia industrializada semelhante. Entretanto o liberalismo implementado aqui, não foi nos mesmos moldes europeus ou norte-americanos, ele foi essencialmente comercial, não levando em conta outros pressupostos desta teoria, tais como a defesa intransigente da liberdade individual e a busca de uma igualdade social mediante uma igualação de oportunidades, de condições iniciais. Este liberalismo parcial atendia perfeitamente ao segundo fator característico das democracias da América Latina na passagem do século XIX para o XX, o formalismo. Por ser uma teoria que não propiciava a busca de um maior grau de igualdade entre os indivíduos e grupos sociais, pela via de uma intervenção pública orientada pelo princípio da universalidade ou da igualdade de resultados[5], o liberalismo aqui empregado associava-se oportunamente ao formalismo das democracias latino-americanas, cujo compêndio teórico não se diferenciava em muito das equivalentes européias, mas que na prática favorecia uma minoria restrita de detentores do poder econômico. Esta elite invariavelmente ligada ao extrativismo agrícola ou mineral dominava a política através do “coronelismo[6]” no Brasil, do “caudilhismo[7]” nos países platinos, e de seus similares no restante do continente. Estes termos expressavam mecanismos de dominação social, surgidos após os movimentos de emancipação, passaram a dominar as cenas políticas locais, tanto na segunda metade do século XIX como nas primeiras décadas do século seguinte. Eles, salvo suas singularidades tinham algumas semelhanças, se caracterizavam entre outras coisas por acordos de favorecimento intra-elite, patrimonialismo, coerção mediante o uso da força, o estabelecimento de um reduto ou “curral” eleitoral, a proeminência de um líder local (o dito “coronel” ou “caudilho”) que normalmente era o que detinha maior poder econômico na região. Estes elementos se enraizaram na práxis política latino-americana, mesmo com o fim da era do predomínio do coronelismo e do caudilhismo, muitos deles se perpetuaram, e modificados podem ser constatados ainda hoje em nossas democracias contemporâneas. O caráter formal das democracias na América Latina não lhes permitia aprimorar-se e as impregnava de fragilidade. Não raras vezes estes limitados regimes democráticos eram abalados por crises econômicas, políticas e sociais, e eram rapidamente substituídos por formas mais autoritárias de governo[8]. Estas não se manifestavam no continente latino-americano unicamente através de regimes ditatoriais, mas também por uma prática política singular, que teve grande ascensão entre as décadas de 1930 e 1960 na região, o populismo. Na se trata de uma forma de governo autoritário propriamente, mas devido ao seu grau de centralização de poder e por considerar hostis as parcelas da sociedade que não aderem ao regime, consideramos que o populismo carrega junto de si elementos do autoritarismo. Maiores diferenças ou semelhanças conceituais destes dois termos à parte, o populismo se assimilava tanto com a democracia como com a ditadura, pois além das características citadas acima ele possuía elementos que poderiam existir em ambos os regimes. Por exemplo, ele conta com um componente multiclassista que visa dar um caráter uniforme à sociedade (o apoio da ampla maioria dos segmentos sociais ao governo), o emprego de políticas expansionistas sem preocupação com o controle fiscal, discurso marcadamente nacionalista, polarização ideológica da sociedade entre “povo” e elite, cooptação de setores sociais e forte mobilização popular. Muitos líderes latino-americanos utilizaram-se das práticas e do discurso populista para assumir e permanecer no poder, tais como Getúlio Vargas no Brasil (1930 – 45[9] e 1950 – 54), Luis Batlle Berres no Chile (1947 – 50 e 1954 – 1958), Juan Domingo Perón na Argentina (1946 – 55[10]) e Lázaro Cárdenas no México (1936 – 40), apenas para citarmos os mais proeminentes. Neste período as principais democracias da América Latina passavam por fortes transformações que mudariam de forma irreversível o panorama social de seus países, era o momento do crescimento da urbanização e industrialização latino-americana. Na mesma época, a região em geral vivia uma fase de crescimento econômico, mesmo que relativa e distribuída de maneira disforme entre os países. Na década de 1960 o desenvolvimento desacelerou, acarretando estagnação econômica e descontentamento popular. Alguns governos na tentativa de romper o ciclo de retrocesso que se instaurava, e também para se afastarem da influência norte-americana, claramente predominante sobre quase toda a América Latina, optaram adotar medidas de caráter socialista. Isto contrariava os interesses dos setores que detinham o poder econômico nestas sociedades, como também as expectativas capitalistas americanas, que rivalizavam pela supremacia internacional com o socialismo soviético. Além destes motivos e por diversos outros particulares de cada pais, a democracia na América Latina, durante a década de 1970 deu lugar a ditaduras militares, sobretudo na América do Sul. Estes governos autoritários foram responsáveis pelo desmonte do aparato democrático que muitas nações levaram anos para construir. Perseguição política, censura dos meios de comunicação, prisões, torturas e assassinatos eram comuns nestes regimes, os quais foram responsáveis por um dos períodos mais negros da história latino-americana. Na passagem de 1970 para a década de 80 as ditaduras militares davam mostras de seu enfraquecimento. Imersos em graves crises econômicas, sem apoio interno e externo, os regimes militares paulatinamente foram se desmantelando. Na maioria dos países houve um período de transição para o retorno da democracia, não havendo em nenhum caso uma revolta popular violenta para que isto ocorresse. Este movimento não ocorria de maneira isolada, ao redor do mundo muitos governos autoritários estavam sendo substituídos por democracias, em particular no sul da Europa e posteriormente no final da década no leste europeu[11]. Na América Latina esta substituição não significou grandes mudanças do ponto de vista social, econômico, e até certo ponto, político. Estavam mantidas as mesmas estruturas sociais anteriores, fortemente marcadas pela desigualdade entre classes sociais, as políticas econômicas seguiram procurando fórmulas (dentro das teorias liberais, como nos governos militares) para recuperar as economias nacionais da estagnação e da hiperinflação, no âmbito político a principal mudança evidentemente, foi a volta de generais e seus pares para os quartéis. Isto em tese abriria espaço para que novos partidos e lideranças políticas surgissem, entretanto, da forma como foram encadeados os processos de transição democrática, a classe política pouco se renovou, tendo como principais protagonistas muitas figuras do período militar e outras tantas oriundas antes deste. No início da década de 1990 as ditaduras militares praticamente desapareceram[12], abrindo espaço para o movimento de consolidação das democracias no continente, através do aprimoramento dos sistemas eleitorais e partidários nacionais, fortalecimento das instituições, entre outros fatores. Este processo contava com o apoio de diversos países de democracia mais antiga e desenvolvida, como também, de organismos internacionais, tanto políticos como ONU e OEA[13] e financeiros como FMI e BID. As manifestações externas não eram somente de apoio, havia muita pressão para o pagamento da imensa dívida externa dos países e para que eles levassem adiante reformas estruturais em seus Estados, que fossem capazes de promover a estabilidade e o crescimento econômico, e ainda que estes países se inserissem (ou fossem inseridos) no contexto econômico contemporâneo de internacionalização financeira, globalização de mercados e hegemonia ideológico-metodológica neoliberal. Neste cenário, muitas medidas foram adotas pela maioria dos países latino-americanos, como sobrevalorização cambial; altas taxas de juros; mudanças nos sistemas de previdência, saúde e educação, aumentando a participação privada; alterações das normas trabalhistas; privatizações das empresas estatais, entre outras. Segundo Fiori[14], esperava-se que tais ações estabelecessem condições para a retomada de desenvolvimento econômico sustentado e “sadio”, entretanto isto não ocorreu. Apesar da diminuição dos gastos com salários e com as políticas sociais, após os planos de estabilização houve um aumento do desemprego, aumento exponencial da dívida pública, desaceleração do crescimento, o que levou a uma crescente polarização econômica da sociedade, agravando ainda mais a desigualdade social existente nestes países. O insucesso das medidas econômicas em conjunto com sucessivos escândalos de corrupção e a utilização instrumental das instituições políticas pelos governantes, fizeram com que a desconfiança da classe política pela população crescesse e paralelamente diminuísse o apoio popular às democracias representativas na América Latina[15]. Ao final da década de 1990 os governos democráticos latino-americanos continuavam a adotar medidas econômicas neoliberais, mesmo tendo elas não sido suficientes para fomentar o desenvolvimento de seus países e geradoras de grande descontentamento em suas sociedades. Tais circunstâncias propiciaram que a estabilidade democrática e a consolidação das instituições públicas sofressem atualmente uma crise de falta de apoio popular. Carentes de uma cultura cívica mais arrojada e forte[16], as sociedades da América Latina tendem a transferir o ônus de suas dificuldades sociais, políticas e econômicas para o regime democrático. O que fica evidente em uma pesquisa realizada pelo Latinobarômetro[17] em 1995, nela muitos dos países relacionados contam com um índice de percepção democrática muito aquém do esperado de sociedades que até recentemente, em termos históricos, viveram sob a égide de regimes autoritários.
[1] Tanto esta citação do discurso de James Monroe ao congresso americano como a menção às guerras napoleônicas estão em : CARDOSO, Fernando H. e FALLETO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Capítulos IX a XI.Zahar: Rio de Janeiro, RJ, 1975. [2] Na América Latina, a independência não foi declarada neste período apenas por Cuba, que somente em 1868 tornou-se independente da Espanha; Guiana (1966, do Reino Unido); Suriname (1975, da Holanda) e pela Guiana Francesa e Ilhas Falkland (Malvinas) que ainda hoje são territórios da França e da Grã-Bretanha, respectivamente. [3] A vivência da democracia é mais antiga no Chile que desde 1830 possuía um regime democrático. [4] Utilizamos para orientar nosso trabalho o significado formal de democracia expresso na obra: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 4ª ed., Editora Universidade de Brasília: Brasília, DF, 1998, págs. 326-328. [5] FIORI, J.L., Os Moedeiros Falsos. Coleção Zero à Esquerda, Vozes: Petrópolis, RJ, 1997, pág. 202. [6] Para uma visão mais detalhada do Coronelismo ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Editora Alfa - Omega, São Paulo, SP, 1975. [7] CARDOSO, Fernando H. e FALLETO, Enzo. Op. Cit. [8] Argentina, Chile e Uruguai apresentarão razoável estabilidade política nos primeiros 50 anos do século XX, graças em grande parte do bom desempenho de suas economias. [9] Entre 1937 e 1945 Getúlio Vargas governou o Brasil através de um regime ditatorial conhecido por “Estado Novo” [10] Juan Domingo Perón ocupou a presidência Argentina também em 1973 e 74, antes falecer em 1º de julho de 1974, sendo sucedido por Isabelita Perón, sua esposa e vice-presidente. [11] Para se ter uma perspectiva crítica destes processos: VITULLO, Gabriel E. Transitologia, Consolidologia e Democracia na América Latina: uma visão crítica. Revista de Sociologia e Política. Nº.17, Curitiba, nov. 2001. [12] Exceção de Cuba, que desde 1959 vive sob um regime ditatorial socialista. [13] A Organização dos Estados Americanos possui diversas resoluções favoráveis à democracia no continente, as quais culminaram com a assinatura de todos os seus membros (todos os países do continente, menos Cuba) da Carta Democrática de 2001, onde lê-se o seguinte, “a OEA reconhece que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região, e que um de seus propósitos é promover e consolidar a democracia representativa”. [14] FIORI, J. L., Op. Cit. [15] POWER, Timothy J.; JAMISON, Giselle D. Desconfiança política na América Latina. Opinião Pública, Vol. 11, Nº 1, Universidade Estadual de Campinas: Campinas, SP, Março de 2005. [16] Ver, LAGOS, Marta. A Máscara Sorridente da América Latina. Opinião Pública, Vol. 06, Nº 1, Universidade Estadual de Campinas: Campinas, SP, Abril de 2000. [17] Organização sediada no Chile, monitora a opinião pública em 18 países da América Latina.

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