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Democracia e Mídia

A preocupação central de Luis Felipe Miguel no artigo “Um Ponto Cego nas Teorias da Democracia: os meios de comunicação” é identificar nas diferentes correntes teóricas sobre democracia a importância ou o papel dos meios de comunicação neste tipo de regime político. Em sua análise, aborda a divisão das concepções democráticas existente entre “democratas limitados”, “democratas republicanos” e “democratas deliberativos”. Citando os principais nomes de cada corrente ele faz uma breve apresentação de suas concepções e de como vêem a comunicação dentro de seu pensamento. Os democratas limitados têm como principal expoente Joseph Schumpeter, para os adeptos desta corrente os meios de comunicação são um aspecto secundário do estudo da democracia devido a basicamente cinco fatores. Primeiramente porque os eleitores seriam ingênuos e passivos diante do processo político ou porque em uma decisão coletiva a discussão pública aprofundada ou a informação de “melhor qualidade” seriam um “desperdício” diante da passividade dos votantes. Segundo, porque neste processo de decisão do voto o eleitorado faria um cálculo racional entre o ônus e o benefício de sua decisão no qual a informação teria um valor ínfimo na tomada de posição. Terceiro, o debate político e a informação seriam uma influência eventual em um mecanismo mais complexo de decisão eleitoral, em que pesa mais as predisposições sociais do indivíduo. O quarto fator indica que a tomada de posição política sofre a influência da condição de vida da pessoa, pouco importando o conteúdo das informações veiculadas na mídia e por fim, o quinto fator indica que a decisão política dos indivíduos surge de forma espontânea, os meios de comunicação teriam certa relevância neste processo, mas não seriam seu determinante. Em suma, na perspectiva dos democratas limitados toda atividade política e a formação de vontades e identidades coletivas é vista de forma secundária, sendo a esfera privada do indivíduo o elemento mais importante para uma tomada de decisão. Outra corrente citada por Luiz Felipe Miguel, a dos democratas republicanos, enfatiza a associação de pessoas e a busca de uma “vontade geral”, o representante mais significativo desta concepção é Jean Jacques Rousseau. Na sua visão a discussão pública é útil para o processo educativo dos cidadãos, entretanto ela nada criaria e a vontade geral lhe precederia e seria superior a ela. Como a identificação e a formação desta vontade geral é algo demasiado vago e propenso a sofrer a manipulação de grupos que eventualmente monopolizem os meios de informação, esta tese possui suas limitações. Uma forma de suprir esta lacuna seria a alternativa proposta por Stuart Mill, que acredita na participação política como meio de formar indivíduos mais capazes e competentes. Mas mesmo este enfoque parece não contemplar a pluralidade das sociedades contemporâneas e a dificuldade de nelas construir consensos ou quase-consensos. De qualquer forma, a concepção democrata republicana ao valorizar a esfera pública apresenta um campo mais fértil para o reconhecimento da importância dos meios de comunicação no processo político do que a dos democratas limitados, ainda que, longe daquilo que Miguel entende como ideal ou necessário. Os adeptos da democracia deliberativa enfatizam a necessidade de discussão política para a formação das preferências coletivas, seu principal inspirador é Jürgen Habermas. Superados os limites da primeira fase do pensamento deste teórico, na qual ele adota uma postura mais descritiva da relação entre política e comunicação nos séculos XVIII e XIX na Europa, ele avança para uma preocupação com as condições (gerais) de validade dos discursos e com a elaboração de um ideal normativo, a “situação de fala ideal” ou o que ficou conhecido como a teoria do agir comunicativo. Nela é necessário existir três pré-requisitos, a fala deve estar franqueada a todos, sem exceção; deve-se levar em conta apenas a argumentação racional, isto é, os interlocutores devem estar em condições de igualdade, sem que posições de autoridade ou riqueza influenciem no debate; os participantes devem todos buscar o consenso, sem se prender a noções preconcebidas. A visão habermasiana possui seus limites, ao privilegiar a ação comunicativa ele deixa de se preocupar com os meios de comunicação, ainda segundo Miguel, ao acreditar que a livre discussão pública possa resolver o conflito entre as mais díspares opiniões existentes na sociedade, Habermas estaria preso a uma noção pré-maquiaveliana da atividade política. Outros autores da corrente deliberativa enfatizam que a barganha é um instrumento alternativo à argumentação racional proposta por Habermas, isto é, o compromisso seria uma opção ao consenso. A teoria democrática deliberativa tem o mérito de defender a participação ampla e eqüitativa no debate, como critério de legitimidade para a construção de vontades coletivas, entretanto, ela deixa de incorporar elementos de desigualdade, como o conflito irredutível de interesses; a inevitabilidade da representação política e a mediação existente em boa parte dos processos comunicativos, o que debilita sua estrutura teórica. Como podemos observar nas três correntes democráticas apresentas por Luiz Felipe Miguel, os meios de comunicação não são em nenhum momento o espaço privilegiado da comunicação política. Segundo o autor, nas sociedades contemporâneas os meios de comunicação são o canal concreto da comunicação política e exercem inegável influência sobre a vida cotidiana. Mesmo ciente que a discussão sobre a questão não se encerra nas laudas de seu artigo, ele aponta dois caminhos complementares para afirmar a centralidade da mídia nas democracias contemporâneas. O primeiro caminho indica que em uma sociedade cada vez mais midiatizada, os meios de comunicação de massa tem alterado a forma do discurso político, um dos elementos essenciais da prática política, passando a ser os canais por excelência de difusão dos discursos políticos. O segundo, diz respeito ao papel de “construtores da realidade social” que os meios de comunicação possuem. Mesmo considerando existindo outros canais responsáveis por essa construção da realidade, como os aparelhos ideológicos propostos por Louis Althusser (escola, igreja, sindicatos, etc.), os meios de comunicação inegavelmente influenciariam o comportamento político dos indivíduos. Um dos indicadores desta relevância que a mídia vem adquirindo sobre a política nas sociedades contemporâneas, é que cada vez mais ela parece assumir algumas das funções tradicionalmente atribuídas aos partidos, como a verbalização de reivindicações de grupos sociais e a fiscalização das ações do Estado. Como demonstra o autor, as correntes de interpretação da democracia relegaram os meios de comunicação a um papel periférico no processo de decisão política dos indivíduos. Nas atuais sociedades onde os veículos de informação adquirem um caráter quase universal de abrangência, não podemos desconsiderar o poder de influência que a mídia possui sobre o cotidiano das pessoas, principalmente como instrumento de obtenção de informação. Por outro lado, a centralidade da mídia no processo de comunicação política nas sociedades contemporâneas, apregoado por Miguel, também pode ser questionado. Acredito que o mecanismo de tomada de decisão política das pessoas, prioritariamente obedece a interferências de fatores de longo prazo, como as tradições familiares e culturais, e de curto prazo, como as condições estruturais e econômicas de suas comunidades. Diante de uma decisão política o indivíduo tende a fazer um cálculo racional, no qual pesam estes elementos de longo e curto prazo e ainda as informações que ele adquire por meio dos veículos de comunicação. Sua decisão será aquela que lhe pareça assegurar o maior benefício com o menor ônus, neste processo os meios de comunicação serão um instrumento para a sua tomada de posição, não seu determinante, próximo ao que refletem os “democratas limitados”, porém, sem desconsiderar o valor que a mídia possui como canal de comunicação política. MIGUEL, Luis Felipe. Um Ponto Cego nas Teorias da Democracia: os meios de comunicação. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB). Rio de Janeiro, nº 49, 1º Semestre de 2000, pp. 51-77.

Diferenças entre Democracia, Autocracia e Totalitarismo na abordagem de Juan Linz

A tipologia mais empregada para distinguir regimes políticos modernos emprega três terminologias, sendo elas democracia, autocracia e totalitarismo. Diversas formas de identificação destes regimes foram formuladas, o estudioso dos regimes políticos, Juan J. Linz, também colabora para a análise empírica destas formas de governo, com uma classificação própria. Sua formulação se baseia em quatro características definidoras, primeiramente o pluralismo que corresponde à diversidade social, econômica e principalmente política, existente dentro do regime. Em segundo lugar analisa o quesito ideologia, buscando identificar o grau de difusão da mensagem do regime dentro da sociedade. Também considera o elemento mobilização e se preocupa em verificar com que amplitude determinado regime consegue se articular e por fim, estuda com que intensidade a figura da liderança influi sobre a população e qual a relação desta com ela. Cada uma destas características definidoras coabitam em grau diferente nos mais variados regimes, e é exatamente a intensidade de cada um deles que determinará a que tipo, determinado regime pertence. Comparemos então, em que grau estes quatro elementos são verificados em regimes democráticos e nos regimes totalitários. Dentre todas as formas de regime políticos, estes dois tipos são porventura os mais antagônicos. Nas democracias o pluralismo é arraigado e incentivado, vários setores da sociedade e da economia possui autonomia para se organizar, adquirindo até mesmo representação política. Geralmente esta liberdade é garantida através de um aparato legal. Nos regimes totalitários o pluralismo, seja ele social, econômico ou político é coibido, em muitos casos mediante o emprego da violência explicita. Nestes regimes não há espaço para a divergência ou oposição, estando assim o poder, sob monopólio do partido oficial ou único. Em relação à ideologia as posições também são contrárias, nos regimes democráticos a existência de uma ideologia hegemônica é dificultada pela liberdade política e o respeito ao pluralismo, nela impera o respeito às normas, o direito à contestação, o compromisso com a cidadania e a liberdade do indivíduo. Isto não ocorre no totalitarismo que regularmente emprega a ideologia para fundamentar e nortear o regime, através de uma construção intelectual complexa, idealiza um Estado distante da realidade, mas possível na teoria. Essa construção teórica vai colaborar na execução do terceiro elemento apontado por Juan Linz, a mobilização. Nos regimes totalitários ela é intensa, permanente e de grande amplitude entre a população, realizada quase que exclusivamente através do ativismo partidário e de organizações ligadas ao partido oficial. Todas as coisas passam a ter uma importância pública e o privatismo da vida particular adquire um caráter pejorativo. Nas democracias a mobilização é ocasional e mesmo assim, em muitos casos não muito intensa. Os períodos eleitorais são os de maior mobilização em uma democracia, nestes momentos os partidos políticos, organizações civis, setores da economia, a sociedade como um todo se articula e participa do processo político. As democracias possuem uma mobilização quase que exclusivamente de aspecto civil, divergindo do totalitarismo onde a mobilização adquire um caráter estatal, devido às iniciativas estarem restritas basicamente ao partido oficial. Estas duas formas de regime, diferenciam-se ainda no quesito liderança. No totalitarismo as lideranças são cooptadas mediante o sucesso e o engajamento destas dentro do partido do regime. Estas lideranças são freqüentemente carismáticas e quando ascendem ao posto máximo da hierarquia governamental, costumam não terem limites previamente definidos para as suas decisões, o que comumente acarreta em abuso de poder. Os regimes democráticos em contrapartida, adotam um forma de escolha indireta de seus líderes, através de sufrágio realizado com certa periodicidade. A liderança quando eleita, fica sujeita ao cumprimento da constituição e à observância das normas do estado de direito.
Também pode-se encontrar diferenciações nos quatro elementos enumerados por Juan Linz, quando contrapomos o totalitarismo e o autoritarismo. O totalitarismo não permite que haja pluralismo, coibindo toda forma de divergência e oposição, no autoritarismo o pluralismo existe, mesmo que de forma restrita, com o consentimento, mas também a vigilância, do grupo no poder. Como por exemplo, o bipartidarismo existente no Brasil entre 1964 e 1979. A ideologia nos regimes totalitários é complexa e permeia todas as áreas da sociedade, já nas autocracias não existe uma ideologia específica a nortear o regime, porém as posições e idéias são bastante marcantes e características da forma de governo implementada. Outra característica que diferencia um regime do outro é a mobilização política, que nos regimes autoritários é praticamente inexistente, salvo em alguns momentos específicos de seu desenvolvimento, o que difere da mobilização no totalitarismo que é forte, extensa, permanente e realizada principalmente através do partido oficial. As lideranças, em ambos os tipos de regime não obedecem a limites formalmente definidos. Nos Estados totalitários as ações do líder são mais imprevisíveis que nos regimes autoritários, isto porque na primeira forma a liderança possui um extremo controle de todo o sistema, já na segunda a atuação política é mais previsível, pois apesar de muitas imposições institucionais, no autoritarismo os líderes parecem manter um mínimo de diversidade ideológica e respeito pelos tramites burocráticos. Sendo assim, podemos concluir que o autoritarismo seria, grosso modo, um meio termo entre a democracia e o totalitarismo, não tendo todas as garantias e liberdades dos regimes democráticos, mas também não se enquadrando na tipologia totalitária.


Juan José Linz (1926), professor emérito de Ciência Política e de Desenvolvimento Social - Universidade de Yale (EUA).

Referência

LINZ, Juan J. A transição e Consolidação da Democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

Democracia na América Latina

No século XIX, após 300 anos de colonialismo ibérico, a América Latina viveu um período de intensa conturbação política, muitos fatores contribuíram para que um processo de independência se disseminasse pelo continente. Tanto a monarquia espanhola como a portuguesa haviam entrado em declínio, o sistema colonial no qual se baseava o extrativismo mercantilista de ambas se deteriorava, o iluminismo surgido na Europa no século anterior em oposição ao absolutismo e que havia alimentado as revoluções americana (1776) e francesa (1789) chega à América Latina e ajuda a fomentar as lutas pela independência. Outros fatos que contribuíram para a independência latino-americana foram as guerras napoleônicas e o crescente poderio econômico, militar e político da Inglaterra e também dos EUA, que em 1823 através da “Doutrina Monroe[1]” apregoa o jargão “a América para os americanos”, distanciando ainda mais as colônias americanas do domínio das metrópoles européias, fragilizando de modo irreversível o pacto colonial no qual se sustentava todo o sistema de dominação-exploração da Espanha e de Portugal no continente. Neste momento as primeiras democracias nascentes (EUA e Inglaterra à frente) já se estabilizavam, enquanto que na América Latina a adoção deste sistema político ainda estava distante. Mas o caminho para a consolidação da emancipação política latino-americana estava aberto, e no primeiro quarto do século XIX praticamente todo o domínio estrangeiro direto sobre continente[2] deixou de existir. Depois de proclamada a independência, os países recém formados adotaram regimes diversos, o Brasil se constituiu uma monarquia, o México um império, e a grande maioria dos países formaram uma República com uma elite oligárquica rural dominante ou um regime ditatorial. Seja pela fragilidade de seus regimes ou por insuficiência econômica, a região passou a sofrer forte influência americana e inglesa, que não raramente interferiam nos assuntos internos dos países latino-americanos, esta predominância substituía o domínio colonial espanhol-português por um imperialismo econômico anglo-norte-americano. Esta situação aliada à incapacidade das elites locais de organizar um sistema político estável e capaz de superar os graves problemas sociais de cada país, propiciaram o surgimento de inúmeros conflitos e contribuíram para o descompasso histórico da América Latina em relação à Europa e à América do Norte. Somente no final de 1800 e no início do século XX as experiências democráticas latino-americanas se ampliaram[3]. A maioria dos países do continente, inclusive os mais proeminentes, adotaram um conjunto de procedimentos para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas que compreendiam basicamente a organização tripartite de Poder, (Legislativo, Executivo e Judiciário); eleição mediante escrutínio para os cargos de parlamentares e administradores; ampliação do sufrágio e igualdade de voto entre os cidadãos aptos a participarem dos pleitos; liberdade de organização partidária e posicionamento ideológico, entre outros[4]. Podemos considerar que a região passava por uma onda democrática, fruto em certa medida de pressões americanas e inglesas, cujos interesses comerciais corriam o risco de não se realizarem satisfatoriamente em países dominados pela desorganização política e social. Pode-se afirmar que as democracias latino-americanas do início do século foram caracterizadas por dois fatores, o liberalismo e o formalismo. O primeiro atendia às pretensões dos capitalistas norte-americanos e britânicos, que viam no continente grandes oportunidades de lucro. Havia muitas e imensas reservas naturais para serem exploradas, as crescentes sociedades eram potenciais consumidores de seus produtos manufaturados, os governos locais incapazes de investir na produção se abriram para o capital estrangeiro e estabeleceram fortes laços comerciais com estes dois países, e com outros de economia industrializada semelhante. Entretanto o liberalismo implementado aqui, não foi nos mesmos moldes europeus ou norte-americanos, ele foi essencialmente comercial, não levando em conta outros pressupostos desta teoria, tais como a defesa intransigente da liberdade individual e a busca de uma igualdade social mediante uma igualação de oportunidades, de condições iniciais. Este liberalismo parcial atendia perfeitamente ao segundo fator característico das democracias da América Latina na passagem do século XIX para o XX, o formalismo. Por ser uma teoria que não propiciava a busca de um maior grau de igualdade entre os indivíduos e grupos sociais, pela via de uma intervenção pública orientada pelo princípio da universalidade ou da igualdade de resultados[5], o liberalismo aqui empregado associava-se oportunamente ao formalismo das democracias latino-americanas, cujo compêndio teórico não se diferenciava em muito das equivalentes européias, mas que na prática favorecia uma minoria restrita de detentores do poder econômico. Esta elite invariavelmente ligada ao extrativismo agrícola ou mineral dominava a política através do “coronelismo[6]” no Brasil, do “caudilhismo[7]” nos países platinos, e de seus similares no restante do continente. Estes termos expressavam mecanismos de dominação social, surgidos após os movimentos de emancipação, passaram a dominar as cenas políticas locais, tanto na segunda metade do século XIX como nas primeiras décadas do século seguinte. Eles, salvo suas singularidades tinham algumas semelhanças, se caracterizavam entre outras coisas por acordos de favorecimento intra-elite, patrimonialismo, coerção mediante o uso da força, o estabelecimento de um reduto ou “curral” eleitoral, a proeminência de um líder local (o dito “coronel” ou “caudilho”) que normalmente era o que detinha maior poder econômico na região. Estes elementos se enraizaram na práxis política latino-americana, mesmo com o fim da era do predomínio do coronelismo e do caudilhismo, muitos deles se perpetuaram, e modificados podem ser constatados ainda hoje em nossas democracias contemporâneas. O caráter formal das democracias na América Latina não lhes permitia aprimorar-se e as impregnava de fragilidade. Não raras vezes estes limitados regimes democráticos eram abalados por crises econômicas, políticas e sociais, e eram rapidamente substituídos por formas mais autoritárias de governo[8]. Estas não se manifestavam no continente latino-americano unicamente através de regimes ditatoriais, mas também por uma prática política singular, que teve grande ascensão entre as décadas de 1930 e 1960 na região, o populismo. Na se trata de uma forma de governo autoritário propriamente, mas devido ao seu grau de centralização de poder e por considerar hostis as parcelas da sociedade que não aderem ao regime, consideramos que o populismo carrega junto de si elementos do autoritarismo. Maiores diferenças ou semelhanças conceituais destes dois termos à parte, o populismo se assimilava tanto com a democracia como com a ditadura, pois além das características citadas acima ele possuía elementos que poderiam existir em ambos os regimes. Por exemplo, ele conta com um componente multiclassista que visa dar um caráter uniforme à sociedade (o apoio da ampla maioria dos segmentos sociais ao governo), o emprego de políticas expansionistas sem preocupação com o controle fiscal, discurso marcadamente nacionalista, polarização ideológica da sociedade entre “povo” e elite, cooptação de setores sociais e forte mobilização popular. Muitos líderes latino-americanos utilizaram-se das práticas e do discurso populista para assumir e permanecer no poder, tais como Getúlio Vargas no Brasil (1930 – 45[9] e 1950 – 54), Luis Batlle Berres no Chile (1947 – 50 e 1954 – 1958), Juan Domingo Perón na Argentina (1946 – 55[10]) e Lázaro Cárdenas no México (1936 – 40), apenas para citarmos os mais proeminentes. Neste período as principais democracias da América Latina passavam por fortes transformações que mudariam de forma irreversível o panorama social de seus países, era o momento do crescimento da urbanização e industrialização latino-americana. Na mesma época, a região em geral vivia uma fase de crescimento econômico, mesmo que relativa e distribuída de maneira disforme entre os países. Na década de 1960 o desenvolvimento desacelerou, acarretando estagnação econômica e descontentamento popular. Alguns governos na tentativa de romper o ciclo de retrocesso que se instaurava, e também para se afastarem da influência norte-americana, claramente predominante sobre quase toda a América Latina, optaram adotar medidas de caráter socialista. Isto contrariava os interesses dos setores que detinham o poder econômico nestas sociedades, como também as expectativas capitalistas americanas, que rivalizavam pela supremacia internacional com o socialismo soviético. Além destes motivos e por diversos outros particulares de cada pais, a democracia na América Latina, durante a década de 1970 deu lugar a ditaduras militares, sobretudo na América do Sul. Estes governos autoritários foram responsáveis pelo desmonte do aparato democrático que muitas nações levaram anos para construir. Perseguição política, censura dos meios de comunicação, prisões, torturas e assassinatos eram comuns nestes regimes, os quais foram responsáveis por um dos períodos mais negros da história latino-americana. Na passagem de 1970 para a década de 80 as ditaduras militares davam mostras de seu enfraquecimento. Imersos em graves crises econômicas, sem apoio interno e externo, os regimes militares paulatinamente foram se desmantelando. Na maioria dos países houve um período de transição para o retorno da democracia, não havendo em nenhum caso uma revolta popular violenta para que isto ocorresse. Este movimento não ocorria de maneira isolada, ao redor do mundo muitos governos autoritários estavam sendo substituídos por democracias, em particular no sul da Europa e posteriormente no final da década no leste europeu[11]. Na América Latina esta substituição não significou grandes mudanças do ponto de vista social, econômico, e até certo ponto, político. Estavam mantidas as mesmas estruturas sociais anteriores, fortemente marcadas pela desigualdade entre classes sociais, as políticas econômicas seguiram procurando fórmulas (dentro das teorias liberais, como nos governos militares) para recuperar as economias nacionais da estagnação e da hiperinflação, no âmbito político a principal mudança evidentemente, foi a volta de generais e seus pares para os quartéis. Isto em tese abriria espaço para que novos partidos e lideranças políticas surgissem, entretanto, da forma como foram encadeados os processos de transição democrática, a classe política pouco se renovou, tendo como principais protagonistas muitas figuras do período militar e outras tantas oriundas antes deste. No início da década de 1990 as ditaduras militares praticamente desapareceram[12], abrindo espaço para o movimento de consolidação das democracias no continente, através do aprimoramento dos sistemas eleitorais e partidários nacionais, fortalecimento das instituições, entre outros fatores. Este processo contava com o apoio de diversos países de democracia mais antiga e desenvolvida, como também, de organismos internacionais, tanto políticos como ONU e OEA[13] e financeiros como FMI e BID. As manifestações externas não eram somente de apoio, havia muita pressão para o pagamento da imensa dívida externa dos países e para que eles levassem adiante reformas estruturais em seus Estados, que fossem capazes de promover a estabilidade e o crescimento econômico, e ainda que estes países se inserissem (ou fossem inseridos) no contexto econômico contemporâneo de internacionalização financeira, globalização de mercados e hegemonia ideológico-metodológica neoliberal. Neste cenário, muitas medidas foram adotas pela maioria dos países latino-americanos, como sobrevalorização cambial; altas taxas de juros; mudanças nos sistemas de previdência, saúde e educação, aumentando a participação privada; alterações das normas trabalhistas; privatizações das empresas estatais, entre outras. Segundo Fiori[14], esperava-se que tais ações estabelecessem condições para a retomada de desenvolvimento econômico sustentado e “sadio”, entretanto isto não ocorreu. Apesar da diminuição dos gastos com salários e com as políticas sociais, após os planos de estabilização houve um aumento do desemprego, aumento exponencial da dívida pública, desaceleração do crescimento, o que levou a uma crescente polarização econômica da sociedade, agravando ainda mais a desigualdade social existente nestes países. O insucesso das medidas econômicas em conjunto com sucessivos escândalos de corrupção e a utilização instrumental das instituições políticas pelos governantes, fizeram com que a desconfiança da classe política pela população crescesse e paralelamente diminuísse o apoio popular às democracias representativas na América Latina[15]. Ao final da década de 1990 os governos democráticos latino-americanos continuavam a adotar medidas econômicas neoliberais, mesmo tendo elas não sido suficientes para fomentar o desenvolvimento de seus países e geradoras de grande descontentamento em suas sociedades. Tais circunstâncias propiciaram que a estabilidade democrática e a consolidação das instituições públicas sofressem atualmente uma crise de falta de apoio popular. Carentes de uma cultura cívica mais arrojada e forte[16], as sociedades da América Latina tendem a transferir o ônus de suas dificuldades sociais, políticas e econômicas para o regime democrático. O que fica evidente em uma pesquisa realizada pelo Latinobarômetro[17] em 1995, nela muitos dos países relacionados contam com um índice de percepção democrática muito aquém do esperado de sociedades que até recentemente, em termos históricos, viveram sob a égide de regimes autoritários.
[1] Tanto esta citação do discurso de James Monroe ao congresso americano como a menção às guerras napoleônicas estão em : CARDOSO, Fernando H. e FALLETO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Capítulos IX a XI.Zahar: Rio de Janeiro, RJ, 1975. [2] Na América Latina, a independência não foi declarada neste período apenas por Cuba, que somente em 1868 tornou-se independente da Espanha; Guiana (1966, do Reino Unido); Suriname (1975, da Holanda) e pela Guiana Francesa e Ilhas Falkland (Malvinas) que ainda hoje são territórios da França e da Grã-Bretanha, respectivamente. [3] A vivência da democracia é mais antiga no Chile que desde 1830 possuía um regime democrático. [4] Utilizamos para orientar nosso trabalho o significado formal de democracia expresso na obra: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 4ª ed., Editora Universidade de Brasília: Brasília, DF, 1998, págs. 326-328. [5] FIORI, J.L., Os Moedeiros Falsos. Coleção Zero à Esquerda, Vozes: Petrópolis, RJ, 1997, pág. 202. [6] Para uma visão mais detalhada do Coronelismo ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Editora Alfa - Omega, São Paulo, SP, 1975. [7] CARDOSO, Fernando H. e FALLETO, Enzo. Op. Cit. [8] Argentina, Chile e Uruguai apresentarão razoável estabilidade política nos primeiros 50 anos do século XX, graças em grande parte do bom desempenho de suas economias. [9] Entre 1937 e 1945 Getúlio Vargas governou o Brasil através de um regime ditatorial conhecido por “Estado Novo” [10] Juan Domingo Perón ocupou a presidência Argentina também em 1973 e 74, antes falecer em 1º de julho de 1974, sendo sucedido por Isabelita Perón, sua esposa e vice-presidente. [11] Para se ter uma perspectiva crítica destes processos: VITULLO, Gabriel E. Transitologia, Consolidologia e Democracia na América Latina: uma visão crítica. Revista de Sociologia e Política. Nº.17, Curitiba, nov. 2001. [12] Exceção de Cuba, que desde 1959 vive sob um regime ditatorial socialista. [13] A Organização dos Estados Americanos possui diversas resoluções favoráveis à democracia no continente, as quais culminaram com a assinatura de todos os seus membros (todos os países do continente, menos Cuba) da Carta Democrática de 2001, onde lê-se o seguinte, “a OEA reconhece que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região, e que um de seus propósitos é promover e consolidar a democracia representativa”. [14] FIORI, J. L., Op. Cit. [15] POWER, Timothy J.; JAMISON, Giselle D. Desconfiança política na América Latina. Opinião Pública, Vol. 11, Nº 1, Universidade Estadual de Campinas: Campinas, SP, Março de 2005. [16] Ver, LAGOS, Marta. A Máscara Sorridente da América Latina. Opinião Pública, Vol. 06, Nº 1, Universidade Estadual de Campinas: Campinas, SP, Abril de 2000. [17] Organização sediada no Chile, monitora a opinião pública em 18 países da América Latina.

Limitações da Democracia Direta e Indireta

Considerando a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, como enfatizou Abraham Lincoln em seu discurso em Gettysburg (1863), a forma democrática ideal seria aquela na qual o cidadão é chamado a colaborar em todas as decisões importantes de sua nação, sem intermediários, exercendo seu poder político de forma direta. Este modelo de decisão política foi concebido na cidade-estado de Atenas na Grécia antiga no século V a.C., o poder de decisão deixou de estar nas mãos de uma pessoa ou um grupo de indivíduos e passou às de todos os cidadãos. Os homens livres atenienses eram chamados para a praça pública para decidir sobre questões cotidianas e o destino da cidade, este foi o princípio do conceito e do emprego da democracia, posteriormente conhecido como democracia direta. Com o avanço romano este modelo político caiu em desuso, sendo retomado somente no século XIX em experiências anarquistas e mais recentemente em formatos de democracia participativa, com influência restrita a pequenos núcleos ou áreas específicas. A pouca utilização da democracia direta como instrumento de tomada de decisão, se deve primeiramente à impossibilidade mecânica de permitir que todos os cidadãos participem de todas as deliberações da cidade, Estado ou nação. Tal nível de participação política se tornou impraticável, na medida que as sociedades foram se tornando maiores e mais complexas. Outro fator que faz da democracia direta uma possibilidade menos atraente está relacionado à privacidade do indivíduo. Pois quando ele é chamado a deliberar sobre todo e qualquer assunto, ainda mais quando estes se sucedem a um ritmo cada vez maior como hoje em dia, este indivíduo perde sua privacidade, seu direito e liberdade de poder levar uma vida que esteja fora do âmbito das decisões, na qual ele possa exercer a sua vida íntima plenamente. O Homem Total deixa de existir para dar lugar ao Cidadão Total, este é chamado a interagir com tudo o que está ao seu redor, permitindo também que aquilo e aqueles que o rodeiam, interfiram, mesmo que indiretamente, na sua privacidade. Ou seja, tudo o que é privado se tornaria público, e isto é algo que levanta uma série de rejeições. Outro formato de democracia existe é a representativa, nela as deliberações coletivas não são tomadas diretamente pelos membros da coletividade, mas por pessoas eleitas para tal finalidade. Ela é empregada em praticamente todos os regimes democráticos modernos e contemporâneos e também é responsável pela atual sensação de falta de democracia e necessidade de alargar os seus limites. A democracia representativa pode ser exercida de duas maneiras, por uma representação através de delegação onde um indivíduo representa outros, atendendo os interesses particulares destes e de sua classe, através do que é chamado de “vinculo de mandato” em que a atuação deste delegado é restrita aos interesses da classe que ele representa e a ela está vinculado intimamente. Outra maneira de representação é a exercida por um fiduciário, ou seja, por uma pessoa que detenha a confiança de outras, e a revele, no sentido que corresponda à confiança das mesmas. É o caso da representação parlamentar, onde este fiduciário age de maneira ampla em prol de interesses gerais. Estas duas modalidades de representação carregam potenciais limites para a soberania do povo e de uma democracia voltada para ele. O primeiro tipo é exercido em favor de uma determinada classe, é o que podemos considerar representação orgânica, ou o que Paul Hirst chama de “mecanismos corporativos”. O representante regularmente pertence à classe a qual representa e possui um mandato que pode ser revogado, na medida em que ele não corresponda aos anseios de seus pares. Os operários serão representados por um operário, os estudantes por um estudante e assim por diante. Esta forma de representação é a mais adequada a uma arena de deliberação restrita e mais técnica, voltada para os assuntos de uma determinada classe, pois é sensato que os professores deliberem sobre as questões pertinentes a uma faculdade, do que operários, e que estes debatam sobre as suas particularidades em lugar de professores ou algum representante de outra classe qualquer. O problema é quando esta forma de representação é transposta para o debate coletivo. Pois nesta forma de debate o que deve prevalecer são os interesses gerais, e a intromissão de interesses particulares certamente levará ao risco de que o bem coletivo seja posto de lado em favor do interesse corporativo. A crescente representação corporativa dentro de um Estado Parlamentar pode levar a uma setorialização das ações de governo em detrimento de classes menos representativas, neste caso, as minorias e os setores menos organizados e economicamente mais pobres da sociedade. A segunda forma de representação, a do tipo fiduciária, é teoricamente a mais adequada ao Estado Parlamentar onde as demandas da coletividade são o tema central. Este cenário é dominado pelos políticos, que em geral são preparados para tal atuação. Mas esta forma de representação também demonstra limites, o mais comum e generalizado é originado pela falta de controle da ação deste representante por parte de seus representados. O eleitor escolhe quem irá decidir, mas não como será sua decisão. Também a gama de alternativas é restrita e está ligada aos partidos que se apresentam em determinada eleição, e com freqüência o eleitor não possui muitas alternativas para mudar seu voto. Como não existe um vínculo de mandato com uma classe e que este não é revogável, mas permanente ao prazo estipulado (salvo algumas cláusulas expressas na legislação), o representante fica suscetível a agir da forma como melhor convir aos seus interesses, mesmo que eles sejam contrários aos interesses da coletividade. Os mandatários que atuam desta forma, são regularmente políticos que não vivem para a política, mas da política, como resumiu Max Weber de forma exemplar no clássico “Ciência e Política: duas vocações”. Em linhas gerais, estes são os dois principais problemas das democracias representativas atualmente; a centralização do debate político na defesa de demandas corporativas e as ações e decisões que beneficiam interesses escusos de alguns indivíduos, que também pode ser em favor de uma determinada classe ou corporação. Nestes casos o cidadão comum é praticamente banido da tomada de decisões e suas demandas não são atendidas. Geralmente quando estes casos se propagam e passam a por em risco a própria existência da democracia evidenciando seus limites, faz-se a exigência de “mais democracia”, o que se exprime regularmente na conjugação da democracia representativa com democracia direta, mas como vimos acima, esta também carrega em si dificuldades que impossibilitam a sua total utilização. Outro fator que dificulta o alargamento da democracia nos Estados modernos é a grande burocratização. Toda política pública é implementada na prática não por seus idealizadores (parlamentares ou governo) ou pelos seus demandantes (povo), mas por integrantes da burocracia estatal. Estes, via de regra, carecem de maior eficiência no exercício de suas funções e também de um maior rigor no desempenho e fiscalização efetiva de suas atividades, sob o risco de haver sucessivos casos de negligência com a atividade administrativa pública e corrupção. O que se fazer então se tanto a democracia direta e a representativa apresentam limites tão consideráveis à sua execução? Bobbio trabalha com a idéia de uma democracia mista, nem totalmente direta, nem totalmente representativa, mas uma composição das duas que pode variar de inúmeras formas, tantas quantas realidades ela pode compreender. A cada Estado caberia formular um sistema democrático que conjugasse de maneira equilibrada os dois modelos, segundo as particularidades de cada país. Esta seria uma forma de aplacar os efeitos negativos que cada uma dessas formas contém, onde existem limites à democracia direta seriam empregadas fórmulas de representação e onde a democracia representativa evidenciasse seus limites se adotaria práticas de democracia direta, utilizando com mais freqüência a interação entre Estado e sociedade civil. Isto evidentemente, aliado a uma maior fiscalização pela sociedade nos processos decisórios e uma maior transparência na administração pública em geral. Ambas as situações, precisam estar condicionadas ao grau de instrução e mobilização da sociedade. Cidadãos com melhor formação terão melhores condições de analisarem as propostas de políticos, serão mais capazes de compreenderem a primazia do bem-estar coletivo em detrimento dos benefícios exclusivamente individuais, de se organizarem socialmente para melhor fiscalizarem e cobrarem de seus representantes, de forma geral, de exercer uma cidadania mais ativa. Antes de qualquer debate sobre que variedade de modelo democrático adotar, seria importante permitir à população o acesso à informação; assegurar um ensino barato, senão gratuito, e de qualidade; propor projetos de incentivo para a formação de bacharéis, mestres e doutores, estimular a produção científica de pesquisa e tecnologia. Somente assim a sociedade poderá realmente combater de forma eficaz os problemas da democracia representativa e trabalhar para uma participação mais direta da população na administração pública.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HIRST, Paul. A Democracia Representativa e Seus Limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.