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Émile Durkheim e a Criminalização da Pobreza

O que se espera quando um ato criminoso é praticado é que ele seja elucidado para que os responsáveis sejam punidos, isto é o que prevalece no senso coletivo da sociedade de como se deve efetivar a justiça. Ocorre que, muitas vezes a ânsia pela solução de um crime atropela o processo investigativo e apontam-se culpados com base em critérios “subjetivos”. Muitas vezes estas implicações se tornam mais importantes que o próprio ato criminoso, fazendo com que o enquadramento de suspeitos adquira maior valor do que a investigação clara e exata da ocorrência. Ao analisar um crime tenta-se identificar um suspeito traçando o perfil social, psicológico e econômico da pessoa. Esta prática quando utilizada por especialistas pode contribuir para a identificação precisa do criminoso, por outro lado, quando é empregada pelo cidadão comum e policiais despreparados, gera interpretações que inadvertidamente estabelecem relações entre a “classe social”, a “raça”, o “gênero”, com a prática criminosa. Os grupos mais prejudicados por este cálculo determinista simplório são os jovens, os negros e indivíduos de baixa-renda, não coincidentemente, grupos que são alvo também de conceitos pejorativos e preconceituosos. Esta relação de determinação na qual a pobreza e características pessoais resultariam em violência e crime possui vários opositores. Émile Durkheim por exemplo, nas “Regras do Método Sociológico” (2001) considera que o crime é dependente daquilo que sócio-historicamente é entendido como normal ou patológico[1]. Para ele, ao nascerem os indivíduos são uma “folha em branco’, as condições para o envolvimento das pessoas com a criminalidade seriam construídas no decorrer da suas vidas, isto independentemente de classe social, gênero ou raça. Ele entende que o crime é algo normal, por existir em todas as sociedades em qualquer tempo e lugar (a ausência absoluta de crime é uma utopia), e necessário, por permitir a evolução da moral e do direito. Na sua concepção a sociedade é um complexo integrado de fatos sociais, esta integração se daria em dois níveis, primeiro do indivíduo em relação ao sistema (conjunto de atores, Estado, escola, família, trabalho, vizinhança, etc.) e segundo, entre as partes deste sistema. Uma sociedade totalmente integrada se refletiria em indivíduos dotados de uma capacidade moral que transcendesse as exigências individuais, o resultado desta equação seria a solidariedade. Por outro lado, uma sociedade povoada por pessoas motivadas por um individualismo excessivo e egoísta resultaria em uma desintegração social ou anomia. O Principal fator integrador da sociedade seria o trabalho e o elemento desintegrador, a ausência ou corrosão da moral. Desta forma, o que levaria uma pessoa a cometer um crime não seria a pobreza material, o desemprego ou a falta de assistência estatal, mas sim, o egoísmo que leva o indivíduo a querer somente para si o que poderia ser compartilhado com os demais, a ganância desmedida que o faz desejar sempre muito mais do que possui, e a preguiça que o impede de conseguir algo através do trabalho e o impele a utilizar métodos escusos. Estas teses de Durkheim sobre a origem da violência e do crime são muito mais plausíveis do que os argumentos daqueles que traçam uma relação determinista entre pobreza e criminalidade, concepção esta que, infelizmente, hoje acaba por amparar ações equivocadas do Estado. Referências DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Companhia Editora Nacional. São Paulo, SP. 2001. (Coleção Biblioteca Universitária) [1] Normal, é aquilo que se pode estabelecer estatisticamente como “tipo médio”. Patológico, é o que pode ser visto como fora das convenções e dos valores comuns de uma sociedade.

A Natureza Humana e a Coerção Social

Um debate que persiste há séculos dentro da filosofia, sociologia e mais recentemente na psicanálise, é a qualidade da natureza do ser humano, seria ela boa ou má? Onde está a origem de nossa bondade e da nossa agressividade, no indivíduo ou no meio que o cerca? Após tantos anos os estudiosos não puderam ainda chegar a uma conclusão definitiva, também não ousamos aqui fazê-lo, porém entendemos que a violência e a criminalidade existentes atualmente possuem uma vinculação com estas questões, procuraremos então discorrer brevemente sobre estes aspectos, de modo que possamos estabelecer uma razoável compreensão sobre os elementos envolvidos nas discussões contemporâneas sobre crime, segurança e cidadania. Por estado de natureza entende-se a condição dos seres humanos antes de se estabelecerem padrões morais, situação na qual os homens se encontravam anteriormente à formação das primeiras vilas e cidades. Momento em que a organização familiar ou tribal imperava e os instintos prevaleciam. Sobre este período da evolução humana não existe nenhum relato histórico, apenas evidências arqueológicas. Portanto, não podemos precisar como era de fato o cotidiano destes primeiros homens, mas existem ponderações de como se davam as relações sociais nesta época, e quais eram as inclinações do temperamento humano. Em seu livro “O Contrato Social”, Jean Jacques Rousseau procura elucidar a forma como o homem abandona o estado de natureza e passa para o estado civil, propiciando a gênese do que conhecemos hoje como “Estado"[1]. Ao conceituar o estado de natureza ele dá à natureza humana uma conotação positiva, o homem nesta condição teria um espírito benevolente, trataria seus semelhantes com respeito e estima, e se preocuparia com seu bem-estar, o que lhe garantiria uma coexistência pacífica. Partindo deste pressuposto, os homens agiriam com solidariedade uns para com os outros e não haveria disputas violentas, somente quando o estado de natureza fosse abandonado para dar lugar ao estado civil, por meio de uma espécie de contrato social espontâneo, é que surgiriam conceitos como propriedade privada e governo. A partir deste momento a violência passaria a ser uma constante na vida do homem, mais como um fruto da competição social do que em razão da índole dos indivíduos. Anteriormente a Rousseau e adotando uma visão diferente, o teórico político inglês Thomas Hobbes entende que o ser humano quando na condição do estado de natureza possui instintos muito mais beligerantes. No “Leviatã”, ele descreve a natureza do indivíduo como sendo egoísta, desconfiada e temerosa, o medo estimularia a competição entre os homens que constantemente disputariam entre si para estabelecer quem seria o mais forte. Para Hobbes, esta condição tornaria o estado de natureza um período violento, de guerra permanente. Na passagem deste estado para o civil, ele entende que os indivíduos na busca pela solução de seus conflitos, estabelecem um pacto que lhes garanta a ordem e a segurança. Diferenciando de Rousseau, ele vê no surgimento do estado civil a possibilidade da garantia da paz, por meio de uma inibição dos instintos violentos do homem em razão de uma autoridade moral e social. Como podemos observar através das reflexões destes dois pensadores, a questão da violência está presente desde os primórdios das sociedades, em algum momento na passagem do estado de natureza para o civil o homem se viu acuado pelo medo, pelo mal, pelo prejuízo que um poderia causar ao outro. Embora não possamos concluir definitivamente se a natureza humana é boa ou má, parece-nos correto que, tanto a predisposição para o mal como para o bem se encontram no íntimo do ser. Seja no estado de natureza ou no civil, o indivíduo guarda potencialidades positivas e negativas, e tende a agir de acordo com a circunstância na qual se encontra. Se o contexto no qual estiver inserido for pacífico ele estará mais propenso a deixar sua bondade se manifestar, caso o ambiente estimule o lado sombrio do espírito humano, a maldade nas suas mais variadas formas pode aflorar. Este dilema parece estar no âmago da conduta dos indivíduos e é provável que, ao passo que o convívio em comum crescia, mais regras morais e sociais eram criadas, e o embate interior entre o bem e o mal se intensificava e se tornava mais complexo. Em uma pequena comunidade nômade regida por laços familiares ou tribais, o estabelecimento de limites e padrões de comportamento em geral caberia ao líder, os demais membros viveriam sem muitos problemas de convivência, o que não eliminaria a possibilidade de conflitos com grupos rivais. A fixação do homem ao solo e o surgimento dos primeiros povoamentos organizados, proporcionou ao homem não apenas novas condições de vida, mas também, a exigência de leis que fossem comuns a todos e tivessem a capacidade de estabelecer uma ordem para o cotidiano. Mesmo com as peculiaridades que cada população apresentava durante seu desenvolvimento nos mais variados recantos do globo, é possível que a maioria delas, em certa medida, experimentou a necessidade de um ordenamento mais racional de sua sociedade[2]. No momento em que se criam mais regras, mais tolerante e cuidadoso de sua conduta o indivíduo tem de ser, pois é provável que em alguma circunstância ele pode se encontrar em condição de ir contra alguma norma. Nestes casos a consciência é apenas um elemento inibidor a tentar refrear os instintos humanos, não raro, ela é insuficiente para impedir que a pessoa se volte contra as regras estabelecidas. Com o progresso das civilizações, o crescimento populacional, o aumento de sua densidade e a diversificação das sociedades, ficou claro que a ordem social não poderia ficar a cargo da disciplina individual, era necessário que se desenvolvesse um aparato de coerção social[3] capaz de refrear a ação danosa de um indivíduo contra outro. Duas questões são pertinentes, como estas sociedades nascentes resolveram o problema de como elaborar um código de leis comum a todos e o que as mobilizaria a respeitá-las? É possível afirmar que os fatores mais importantes sobre estes pontos seriam a cultura e o hábito de cada povo, os líderes de cada sociedade passariam a adotar os hábitos do dia-a-dia como uma regra, isso teria a vantagem de eliminar os custos com o processo de elaboração da norma, como também, propiciaria que a regra quando adotada seria bem aceita e respeitada. Porém, isso não era uma garantia de que o cotidiano seria ordeiro e tranqüilo, sempre haveria a hipótese de um ou mais indivíduos transgredirem a norma, agindo em benefício próprio, mesmo que isso implicasse no prejuízo aos demais. A quem caberia então inibir esta ação e, em se concretizando tal situação, quem seria o responsável por punir os transgressores? Nos primórdios da organização social o poder era extremamente concentrado, a liderança que formulava a lei também era aquela que a aplicava. O poder de determinar o que era ou não lícito e as punições impostas sobre os infratores estava nas mãos de um rei ou equivalente. Para fazer valer sua autoridade, utilizava recursos coercitivos, como a manutenção de uma força militar e o uso da violência. Esta forma de organização do poder era o embrião do que conhecemos hoje como Estado[4], e a maneira pela qual a maioria dos povos viria a constituir nações. A coerção social teve um papel significativo no desenvolvimento de uma estrutura política, mas ela não foi utilizada apenas como um mecanismo de repressão a eventuais desvios de conduta. Esta utilização seria mais ideal do que real, pois a evolução das primeiras experiências de organização política para nossa forma de Estado contemporâneo não foi linear, sofreu revezes ao longo da história. O que deveria ser regra tornou-se exceção, muitos líderes utilizaram a prerrogativa de fazer e aplicar leis para ascender e permanecer no poder, o que deveria servir para o bem-estar da comunidade, invariavelmente passou a ser utilizado para sua dominação. A má utilização das formas de coerção social pelos governantes não elimina sua necessidade, mas subverte sua função, isso acaba por desqualificar sua importância e corromper outros setores da organização governamental. Estes são apenas alguns aspectos da problemática envolvida no combate à violência, que com o decorrer da história se tornou mais complexa. Nas sociedades contemporâneas, antigos dilemas ainda estão presentes, que associados a novos problemas como a criminalização da pobreza, a militarização da segurança pública e a policialização das políticas públicas, tornam o enfrentamento da criminalidade uma tarefa ainda mais difícil. Essas questões fazem parte da realidade brasileira e produzem sérias implicações, cujos reflexos perversos são vividos no nosso cotidiano.
Notas [1] Como uma forma de organização do poder e de ordenamento político. Para uma visão mais detalhada da definição de Estado ver: BOUBON, Raymond; BOURRICAUD, François. Dicionário Crítico de Sociologia. 2ª Ed. Editora Ática. São Paulo, SP, 2002, Págs. 205-214. [2] Pode-se fazer uma distinção entre duas formas de sociedade neste processo de evolução. As mais primitivas e tradicionais, que possuem um perfil mais homogêneo, de baixa diferenciação entre os indivíduos, podem ser qualificadas como sendo do tipo “mecânicas”; já as sociedades mais modernas, com características industriais e urbanas, dotadas de um estrato social mais heterogêneo, podem ser tipificadas como “orgânicas”. Em uma sociedade mecânica o principal fator de coesão social é a religião, em uma sociedade orgânica é o trabalho que desempenha este papel. [3] O termo “coerção social” é utilizado como forma de caracterizar o poder exercido pelos chefes sobre a sociedade que lideram, por meio da utilização de recursos repressivos. [4] Em “Ciência e Política: duas vocações”, Max Weber considera que o Estado é o monopólio legítimo da força, a forma de organização política que garante a exclusividade do uso da violência pelos detentores do poder. A análise que faço aqui se aproxima desta concepção de Weber, partilhando da idéia de que na gênese do Estado está a organização do poder e do uso da força.