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Policialização das Políticas Públicas

Atualmente, a escalada da violência e da criminalidade no mundo, tem sido a razão de um incremento de ações na área de segurança. A crescente sofisticação das organizações criminosas, a larga utilização de armas pesadas pelos malfeitores, o recurso a práticas terroristas, entre outros fatores, são uma evidência de que os procedimentos policiais precisam se adaptar a uma nova realidade, caso contrário, podem ser sobrepujados pelo crime. Em geral, as autoridades políticas e policiais buscam intensificar as políticas tradicionais de segurança pública, ampliação das penas, aumento do efetivo policial, construção de novos presídios, são as respostas aos movimentos cada vez mais ousados dos criminosos. Raramente estas autoridades buscam formas alternativas de encarar o problema, iniciativas que ao invés de atacar as conseqüências do banditismo possam atuar contra suas causas. Um processo sistematizado de policialização das políticas públicas é descrito no documentário de Ron Mann “Maconha: a história verdadeira – e sem cortes – da proibição da cannabis” (1997). O uso da maconha fora introduzido nos EUA pelos imigrantes latinos e a princípio era visto como um costume, com a “lei de el pasos” (1919) a erva passou a ser classificada como um entorpecente e o seu consumo combatido. Aos poucos foi se estruturando naquele país uma política de combate às drogas, em associação com uma campanha na mídia, que estabelecia uma ligação entre a maconha e o crime, a opinião pública assustada com as supostas conseqüências de seu uso, exigiu leis e ações mais rígidas contra ela. Apesar de uma relativa estabilização nas décadas de 1960 e 70, a política norte-americana de combate às drogas foi se intensificando ao longo do tempo, com ações repressivas cada vez mais contundentes e um orçamento que entre os anos de 1980 e 94 chegou a U$ 218 bilhões.
Todo este volume de recursos, associado a uma legislação rigorosa e a campanhas tendenciosas, contribuíram para a formação nos EUA de um “Estado Penal”, que em certa medida, também pode ser observado na Europa, trata-se de uma substituição do “Estado de Bem-Estar”, a ênfase das políticas públicas deixa de estar sobre a área social e passa para a segurança pública. As populações de baixa renda são as mais prejudicadas com esta mudança nas políticas públicas, além de deixar de contar com o auxílio do Estado em serviços como a previdência, saúde e educação, é esta parcela da sociedade que acaba sendo a mais visada pelas ações repressivas da polícia e da justiça. Onde o “welfare state” não foi devidamente implementado, como no Brasil, a adoção do “Estado Penal” gera efeitos ainda mais perversos. Por aqui, o incremento da estrutura policial-penal está condicionado aos nossos problemas históricos, como a profunda desigualdade social e a alto índice de corrupção estatal. Apesar de ter como objeto de análise a reformulação da organização policial, na obra “Polícia Civil de Pernambuco: o desafio da reforma” (2003), Jorge Zaverucha descreve alguns problemas que podem ser relacionados com a adoção do modelo de “Estado Penal”. Entre algumas das questões abordadas por ele, destacamos o aumento da autonomia funcional das polícias, o que dificulta a responsabilização por práticas ilegais e contrárias aos direitos humanos; e a legalização da desigualdade processual no trato de tipos diferentes de delitos e agentes criminais. Assuntos estes que remetem a dois dos principais problemas do sistema jurídico e policial brasileiro, a impunidade e a aplicação diferenciada da lei entre os indivíduos. A falta de condenação por crimes cometidos, infelizmente não é uma exclusividade dos policiais, graças à ineficiência da polícia e da justiça brasileira, muitos criminosos permanecem impunes. Segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), somente em 2005 foram registrados 40.845 homicídios dolosos no Brasil, não há estatísticas sobre quanto deste percentual teve a autoria elucidada, com base nas informações veiculadas pela mídia, podemos aferir que este índice é baixíssimo.
Observamos que em virtude do contexto caótico da área de segurança pública no Brasil, há um apelo popular por uma atuação mais efetiva da polícia e da justiça contra o crime, o que justificaria as medidas tomadas pelas autoridades que aos poucos vão cristalizando o “Estado Penal” no país. Em uma nação onde a corrupção estatal é endêmica, o combate ao crime organizado é uma prioridade, mas uma ação governamental neste sentido, que impeça ou dificulte a formulação de políticas públicas de outra natureza representa a perpetuação do subdesenvolvimento, algo que precisa ser combatido tanto quanto a violência e o crime organizado.
O crime no Brasil evoluiu nas últimas décadas de forma acentuada, processo esse que não foi acompanhado pela melhora de nossa segurança pública. Diante do agravamento da situação medidas contundentes devem ser tomadas, não se trata de cristalizar o “Estado Penal”, mas sim de promover uma união dos atores políticos e da sociedade em geral em torno de uma pauta propositiva, que inclua temas como a reforma do judiciário, a unificação das polícias civil e militar, a valorização das carreiras policiais, melhores condições de encarceramento, respeito aos diretos humanos, etc. Mesmo que a erradicação do crime seja uma utopia, a melhora nos índices de criminalidade e violência não é algo inatingível, podemos viver em uma sociedade mais pacífica e justa, para isso necessariamente precisamos encarar o problema além do aspecto repressivo e buscar formas alternativas de solucioná-lo.

A Militarização da Segurança Pública

Ao abordar o tema da militarização da segurança pública no livro “FHC, Forças Armadas e Polícia” (2005) o professor Jorge Zaverucha utiliza o conceito elaborado por Cerqueira César para definir militarização, segundo este último, trata-se de um “processo de adoção e uso de modelos militares, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal em atividades de natureza civil, dentre elas a segurança pública” (ZAVERUCHA apud CERQUEIRA, 1998). A força policial é uma entidade que deveria ser essencialmente civil, mas no Brasil ela se reveste de características militares, possuímos até mesmo uma “polícia militar”, um paradoxo em si e uma singularidade brasileira. Zaverucha vai além, e escreve que a presença militar nos assuntos de segurança pública é até mesmo “aceita politicamente, socialmente e culturalmente”. Acredito que um dos fatores que corroboram esta afirmação está em nossa história, no período colonial não havia uma força policial distinta da militar, o controle social era exercido pelo mesmo aparato responsável por repelir ameaças externas. No primeiro e segundo reinado é que começam a surgir nas províncias forças policiais “independentes” da força militar, mas ainda assim com um viés militarista, sendo criadas primeiramente as polícias militares e posteriormente as polícias civis. A polícia militar, como não poderia deixar de ser, nascia com uma forte influência dos militares, utilizando entre outros elementos, uma hierarquia semelhante. Com a criação das forças policiais, oficialmente as forças armadas deixariam de interferir no cotidiano da sociedade, mas com a existência de uma polícia militar não deixaram de ter ascendência sobre ela. Isto fica claro no período republicano iniciado em 1889, no qual se alternaram no poder regimes democráticos e autoritários, sobretudo durante a ditadura militar de 1964 a 1985, na qual as polícias, particularmente a militar, foram utilizadas como mais um braço armado do regime. Embora a organização e o funcionamento da área de segurança pública no Brasil possuísse notórios problemas, durante o processo de redemocratização este foi um item que permaneceu à margem das discussões políticas. Durante a elaboração da Constituição Federal de 1988, os parlamentares poderiam ter reformulado todo o sistema, mas isso não ocorreu. Talvez estivessem mais preocupados com a situação econômica do país ou com a nova organização política-institucional, ou o que é mais provável, não quiseram enfrentar o lobby e o corporativismo policial. Com a permanência de praticamente todo o aparato de segurança pública herdado da ditadura, os erros passados continuaram a ocorrer durante os sucessivos governos democráticos. É comum, tanto no âmbito estadual como federal, vermos militares sendo “convocados” para assumir cargos civis nos órgãos de segurança pública. Durante o Governo Fernando Henrique (1994-2002) houve um “aparelhamento” destas instâncias por militares. Um exemplo desta situação pôde ser verificado na condução da política nacional antidrogas, o comando da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) cabia ao General Alberto Cardoso. Como observa Zaverucha, sob seu comando o combate ao tráfico de drogas deixou de ser uma questão de segurança pública e passou a ser uma questão de segurança nacional. Esta mudança de concepção em certa medida avaliza a utilização do aparato militar para coibir ações relacionadas ao narcotráfico, como a ineficiente Operação Mandacaru em 1999, realizada pelo exército na região conhecida como “Polígono da Maconha” em Pernambuco, ou ainda em situações mais complexas, como o combate à violência urbana na cidade de Rio de Janeiro. A militarização da segurança pública é um fenômeno que não se restringe ao Brasil, ele também pode ser verificado em muitos países de tradição policial frágil e histórico de governos autoritários. No filme “Traffic” de Steven Soderbergh (2000), observamos algumas facetas desta problemática questão, na parte do enredo que se desenrola no México, o papel de polícia é exercido também pelas Forças Armadas, ocasionando uma relação confusa e conflituosa entre a polícia civil e os militares, e também, a cooptação de oficiais do exército pelos cartéis do narcotráfico mexicano. Embora seja uma peça de ficção, o filme possui um amparo na realidade, nos últimos anos temos assistido a uma crescente militarização da segurança pública, este movimento pouco ou em nada contribuiu para a melhora nos índices de criminalidade, e ainda carrega potenciais problemas, como “a promoção da debilidade do controle civil da sociedade; a exposição das Forças Armadas a casos de corrupção, danificando sua eficiência e legitimidade, acarretando um ciclo vicioso: verbas que poderiam ser usadas para reequipar as forças policiais são direcionadas para as Forças Armadas” (ZAVERUCHA, 2005). Referências CERQUEIRA, C.N. Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, v.22, 1998. ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia: entre o autoritarismo e a democracia. Rio de Janeiro, RJ. Editora Record, 2005.