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A Precarização da Questão Social Local no Brasil

Os grandes fenômenos socioeconômicos como a industrialização, a urbanização e a globalização não estão restritos a uma localidade, região ou mesmo nação, são processos que ultrapassam as barreiras territoriais e políticas, e que podem ser observados em um conjunto amplo e heterogêneo de lugares em diferentes períodos de tempo. Diante deles os atores locais possuem pouca margem de ação, não tendo os meios necessários para influenciar decisivamente a trajetória de seu desenvolvimento. Por outro lado, muitos dos reflexos destes grandes fenômenos se manifestam no âmbito local, e são passíveis da ação dos administradores e demais atores locais. A parcela da população mais fragilizada economicamente é aquela que sofre de maneira mais contundente os efeitos dos grandes fenômenos socioeconômicos. Um exemplo disto é o desenvolvimento das cidades brasileiras e o crescimento do PIB nacional verificado após 1950, que não foram acompanhados por uma melhor distribuição de renda entre a sociedade (MARICATO, 2000), representando um agravamento da questão social em diferentes áreas. Em relação à habitação e as condições de acesso aos serviços públicos, cada habitante de uma cidade é um demandante de moradia e serviços, os processos migratórios e o crescimento populacional registrado na segunda metade do século passado no Brasil, ampliaram estas demandas nas cidades. O ritmo destes processos em paralelo ao da urbanização “acarretou uma expansão periférica e precária das cidades” (SCHEID, 2007, p. 1398). A precariedade das habitações, notabilizada pelas subhabitações e o processo de favelização, e sua incidência principalmente nas periferias urbanas é ainda motivada pelo alto valor dos imóveis, incompatível com a baixa renda de grandes segmentos da sociedade. Gradativamente este cenário tem melhorado, em função de novas políticas habitacionais estatais, aumento do volume e da qualidade das novas construções e pela melhoria da infra-estrutura urbana das cidades. Porém esta melhoria é relativa, tendo em vista que ainda persiste uma notória desigualdade de condições entre diferentes grupos sociais e entre as regiões de uma mesma cidade (MORAIS, 2002, p. 110). A questão da desigualdade permeia o estrato social brasileiro e é mais evidente no meio urbano, as melhorias do sistema de abastecimento de água e eletricidade, do sistema saneamento, do atendimento de saúde e educação, entre outros serviços públicos não atende de maneira equânime os cidadãos de bairros pobre e ricos. As oportunidades de trabalho e emprego também são distribuídas desproporcionalmente entre a população, as diferenças de condições de ensino entre os cidadãos, favorecem a inserção daqueles que possuem melhor acesso à capacitação educacional e profissional. O mercado de trabalho no Brasil passou por uma reorganização nas últimas três décadas. Foi abandonado um modelo amparado ainda nos conceitos do fordismo, com atividades em tempo fixo, categorias, estáveis e padronizadas, e com uma divisão do trabalho altamente hierarquizada, e assumido outro modelo, considerado na literatura como um “regime de risco”, com atividades mais flexíveis, diminuição dos postos de comando e categorias mais heterogêneas. (GUIMARÃES, 2004, p. 18). Neste modelo o trabalhador age como um empreendedor autônomo assumindo todo o risco de seu sucesso profissional, sendo responsável por sua qualificação e carreira, neste novo contexto as condições iniciais de preparação para o mercado de trabalho, são ainda mais determinantes para o sucesso de inserção profissional. Estes novos formatos de trabalho possibilitados pelo “regime de risco” se caracterizam então por uma elevada vulnerabilidade, pois implicam na, “insegurança da relação de trabalho e na percepção da renda; a ausência muitas vezes de qualquer regulamentação laboral e de proteção social, especialmente contra demissões e acidentes de trabalho; o uso flexível do trabalho (horas e múltiplas funções); e freqüentemente menores salários, principalmente para os menos qualificados” (CACCIAMALI, 2000, p. 164). Os trabalhadores com baixa qualificação quando não estão empregados em condições precárias, engrossam as estatísticas de desemprego ou são impelidos a atividades de trabalho informais, não contando com os benefícios e proteções trabalhistas expressos na legislação. Nas seis regiões metropolitanas tomadas como referência pelo IPEA para o estudo do mercado de trabalho no país,[1] o número de pessoas desocupadas ou trabalhando informalmente no ano de 2007 foi maior que o de trabalhadores registrados. Naquele ano a taxa de desemprego total registrada foi de 16,63 % da população economicamente ativa, já a porcentagem de trabalhadores com emprego informal[2] no mesmo ano foi de 39,8% (IPEA, 2008), um total de 56,43% desta população. Não há dados segmentados do índice de informalidade, portanto o valor mensurado pode englobar desde o ambulante ao consultor empresarial, que possuem demandas distintas junto ao poder público. Levando-se em conta a estratificação social do país, é possível considerar que a grande maioria dos trabalhadores informais desempenha funções com baixo rendimento, porventura em condições precárias e insalubres. Apesar de esta realidade ser mais evidente nas regiões metropolitanas (RAMOS, 2002), ela não é uma situação exclusiva dos grandes centros, cidades de diferentes tamanhos e regiões enfrentam o mesmo problema, o que torna a questão do mercado de trabalho um assunto preocupante para os administradores municipais. Esta grande porcentagem de pessoas desocupadas ou na informalidade se reflete sobre os serviços públicos municipais, ampliando sua demanda. São cidadãos que geralmente dependem dos serviços de assistência estatais para que consigam manter um padrão de vida satisfatório para si e suas famílias. Mesmo que não estejam contribuindo com a produção ou a arrecadação municipal, não podem deixar de serem atendidos em suas necessidades básicas. Apesar dos municípios serem afetados diretamente pelos problemas existentes no mercado de trabalho, sua atuação sobre esta questão é limitada por impedimentos legais, institucionais e financeiros, é importante que este quadro se modifique. Para que os governos locais possam ampliar sua capacidade de ação sobre os problemas relacionados com o trabalho, os governos estaduais e o governo federal precisam atuar em parceria com os governos municipais, delegando responsabilidades e repassando uma quantia maior dos tributos por eles arrecadados sobre as atividades produtivas exercida nos municípios. A condição vivenciada pelos cidadãos no mercado de trabalho possui relação direta com sua situação econômica, que refletirá ainda sobre sua acessibilidade aos serviços de saúde (TRAVASSOS et al, 2000) e educação (HADDAD & GRACIANO, 2003). Os indivíduos que pertencem aos estratos mais baixos da estrutura social não possuem recursos para buscar estes serviços no sistema privado, dependendo da oferta da rede pública e dos serviços subsidiados pelo estado. Ocorre que a rede pública de saúde e educação no Brasil é precária, não dispondo de vagas suficientes para atender a demanda e salvo devidas exceções, não oferece um serviço de qualidade. Isto é agravado por uma desproporcionalidade na distribuição geográfica da rede de serviços médicos e educacionais no país. Ao analisar as disparidades na oferta e consumo dos serviços de saúde entre as regiões Nordeste e Sudeste nos anos 1989 e 1996/1997, Cláudia Travassos (2000) identifica que, apesar de ter ocorrido uma melhora entre os anos estudados em favor da região Nordeste, esta permanece apresentando um desempenho inferior ao Sudeste. Embora nos últimos anos os índices educacionais nacionais também tenham se modificado positivamente, a mesma disparidade regional verificada na saúde se repete na educação. Levando-se em conta a evasão e a repetência a taxa média brasileira é 19,5%, já nas regiões Norte e Nordeste esta porcentagem sobe para 27,3% e 27,5% respectivamente (HADDAD & GRACIANO, 2003, p.180). A precariedade e a desproporcionalidade geográfica dos serviços de saúde e educação precisam ser enfrentadas pelas administrações locais, tendo em vista que, atualmente grande parte de suas ações está sob a tutela dos municípios. Até o início da década de 1990 estas duas áreas eram de atribuição predominante dos Estados e da União, com a implementação de reformas administrativas de viés gerencial pelo governo federal[3], foi adotada uma política de descentralização que delegou aos municípios grande parte da responsabilidade pela gestão das áreas de saúde, educação, assistência social, e em menor escala, habitação e saneamento básico (ARRETCHE, 1999). Estas são áreas que tradicionalmente compõem uma abordagem clássica da questão social, mas com as mudanças vivenciadas pelas cidades brasileiras decorrentes dos fenômenos estruturais ocorridos na última metade do século XX, elas passaram a dividir a atenção dos governos locais com temas como o meio-ambiente, a mobilidade, a segurança e a identidade cultural. Estas questões se agravam com o aumento da densidade populacional das aglomerações urbanas, se por um lado para os micros e pequenos municípios estes não são temas relevantes, nas médias e grandes cidades eles estão no centro do debate público. Nestes centros a expansão urbana geralmente ocorreu de forma desordenada, muitas vezes sobre áreas de proteção ambiental, de mananciais, de bacias hidrográficas, encostas de morros ou fundos de vale, causando a poluição e a degradação dos ecossistemas, expondo a população ali residente a riscos ambientais e a danos a sua saúde (JACOBI, 2005, p. 4). Estas ocupações ocorrem à revelia das diretrizes para o uso do solo estabelecidas pelos municípios, em conseqüência, geralmente estas áreas não costumam contar um atendimento eficaz de transporte público, que assegure a acessibilidade das populações ali localizadas às opções de lazer, trabalho e demais serviços públicos e privados existente nas cidades. As relações entre o uso do solo e o transporte nas cidades são determinantes para a mensuração do nível de mobilidade urbana existente nas cidades (CAMPOS & RAMOS, 2005), ao ocuparem regiões periféricas e com um serviço de transporte público limitado, os indivíduos têm seu direito de ir e vir cerceado, limitando sua circulação às redondezas de sua moradia, que em geral não corresponde à demanda por bens e serviços públicos e privados daquela população. Nas últimas décadas um problema que cresce vertiginosamente nas cidades brasileiras, em particular nos médios e grandes centros, é o fenômeno da violência urbana. Suas causas são atribuídas a vários fatores, expectativa de consumo frustradas, legislação permissiva, sistema penal deficiente, corrupção institucionalizada, corrosão dos valores morais, entre outros. Ele se manifesta por meio de assassinatos, roubos, seqüestros, tráfico de drogas e armas, que repercutem de uma forma ou de outra sobre toda a sociedade brasileira (VELHO, 2000). Pela norma constitucional[4] a segurança pública é um dever do Estado, sendo exercida de forma desproporcional entre os seus diferentes níveis de poder. No Brasil a gestão da segurança pública é centralizada pela União e os Estados, restando aos municípios somente a formação de guardas municipais para a proteção de seus bens, serviços e instalações. Há no congresso nacional algumas propostas de emenda constitucional que pretendem redefinir o sistema, implantando um modelo municipalizado de segurança pública (DE SOUZA, 2000). A municipalização da segurança pública teria como potenciais efeitos positivos, um maior controle recíproco entre a polícia e a sociedade local, e uma maior colaboração da população com a Instituição policial. Porém, ela pode trazer alguns problemas, como o desvio de emprego das atividades policiais pelo poder municipal, um aumento significativo dos gastos do município, além de não garantir a eliminação de vícios já enraizados nas polícias civis e militares. É certo que com o agravamento da criminalidade nas cidades brasileiras, as gestões municipais precisam ampliar sua participação no enfrentamento do problema, possivelmente com ações de inteligência que possam subsidiar as ações de força das polícias federais, civis e militares. Os fenômenos urbanos recentes e as transformações sociais deles derivadas, são também percebidos na dimensão cultural. A identidade que os cidadãos tinham com a cidade onde moravam se modificou a partir dos anos 1960, com a intensificação da industrialização, do adensamento demográfico e da urbanização, houve uma ruptura morfológica da cidade, seja pela modificação da forma e dimensão das construções como pela função dada aos espaços públicos. A cidade que antes afirmava e refletia uma identidade brasileira composta pela miscigenação de brancos (europeus), negros (africanos) e índios (nativos),e que propiciava a interação social, passou incorporar elementos urbanísticos modernos formulados no exterior, o caso exemplar desta ruptura é a construção de Brasília (KOHLSDORF, 2004). Esta nova configuração do espaço citadino acarretou o isolamento de muitas áreas da cidade, na medida em que propunham espaços públicos demasiadamente amplos e vias de trânsito que favorecessem o alto tráfego de automóveis, que entre outras proposições, contribuíram para a descaracterização cultural de muitos centros urbanos. Paradoxalmente, este cenário tem sido amenizado com o incremento da internacionalização do Brasil nas últimas duas décadas. A migração interna e mais recentemente a Globalização favorecem a formação de cidades multiculturais nas quais as culturas locais interagem com outras externas, criando um ambiente de pluralidade com uma tendência de homogeneização cultural, na medida em que diluem as características próprias de uma localidade em uma babel de individualidades e expressões culturais diferentes. Como uma resposta a este processo, muitos indivíduos com tradições e valores semelhantes acabam se reunindo em comunidades com a intenção de perpetuar a cultura e a identidade local (GOMES, 2005). Esta resistência à homogeneidade cultural permite o surgimento de um novo significado para antigas tradições, que já não cumprem somente uma função subjetiva ou social local, mas passam a representar a identidade daquela localidade perante uma sociedade globalmente integrada. Ao incentivar e ajudar a preservar as manifestações culturais locais, o poder público está fortalecendo a imagem do município. Em um cenário de intensa competição entre cidades pelos investimentos privados, uma percepção positiva do município representa um diferencial positivo que favoreça a atração de investimentos externos para aquele local. A dinâmica dos macros fenômenos socioeconômicos implicam em efeitos diversos para as cidades, na maioria das vezes representam problemas para os quais os administradores públicos não as prepararam. Elas não podem ser encaradas como ambientes monolíticos, por fatores regionais ou internacionais elas estão em constante transformação, produzindo novos fatos e necessidades sucessivamente, um contexto que requer um gerenciamento arrojado e competente do poder público local. O emprego de técnicas de planejamento e gestão de políticas públicas para o enfrentamento destas questões permite que os governos municipais respondam com mais eficiência às demandas locais, e sejam melhor sucedidos no processo de construção do bem-estar da população.
Referências
ARRETCHE, Marta . Politicas Sociais no Brasil: Descentralização em um Estado Federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 111-141, 1999. CACCIAMALI, M. C.. Globalização e processo de informalidade. Economia e Sociedade (UNICAMP), IE - UNICAMP, São Paulo, v. 2000, n. julho, p. 153-175, 2000. CAMPOS, Vania Barcellos Gouvea ; RAMOS, R. A. R. . Proposta de Indicadores de Mobilidade Sustentável Relacionando Transporte e Uso do Solo. In: Congresso Luso-Brasileiro para Planejamento Urbano, Regional, Integrado e Sustentável, São Carlos. PLURIS, 2005. DE SOUZA, J. R. C. Municipalização da Segurança Pública – nota técnica. Consultoria Legislativa, Câmara dos Deputados, Brasília, 2000. GUIMARÃES, Sônia M. K.. Transformações na realidade do trabalho no Brasil e em Portugal . Sociologias, Porto Alegre, v. 12, p. 16-31, 2004. HADDAD, Sérgio; GRACIANO, Mariângela . Acesso à educação ainda não é universal no Brasil. In: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2003 - Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, p. 179-183, 2003. IPEA, Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise, nº 35, fevereiro de 2008. Disponível em: <>. JACOBI, Pedro Roberto. Cidade, Ambiente e Sustentabilidade. Postado em 24 de Novembro de 2005. Disponível em <>. KOHLSDORF, M. E.. Interação Social, Identidade Cultural e Espaço Urbano no Brasil: as Metamorfoses do Sec.XX. Paranoá (UnB), v. 1, p. 1-15, 2004. MARICATO, E.. Urbanismo na periferia do mundo globalizado: metrópoles brasileiras. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação SEADE, v. 14, n. 4, p. 21-33, 2000. MORAIS, Maria P. Breve Diagnóstico sobre o Quadro Atual da Habitação no Brasil. In: Boletins IPEA, Políticas Sociais - acompanhamento e análise, nº 4, p. 109-118, 2002. RAMOS, L.. A Evolução da Informalidade no Brasil Metropolitano: 1991-2001. Mercado de Trabalho (Rio de Janeiro), IPEA, v. 19, p. 51-56, 2002. SCHEID, C. M.. O Impacto da Globalização na Elaboração de Políticas Públicas Urbanas: uma possibilidade de aproximar a cidade à cidadania. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, Belo Horizonte-MG. Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI, v. 1, p. 1390-1407, 2007. TRAVASSOS, C. M. R.; VIACAVA, Francisco; FERNANDES, C.; ALMEIDA, C.. Desigualdades Geográficas e Sociais na Utilização de Serviços de Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 133-149, 2000. VELHO, G.. O Desafio da Violência. Estudos Avançados, São Paulo, v. 14, n. 39, p. 56-60, 2000.
Notas
[1] Para o levantamento sobre o desemprego foram utilizadas as regiões metropolitanas de São Paulo (SP), Distrito Federal (DF), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Salvador (BA) e Belo Horizonte (MG). No caso dos dados sobre a informalidade o Distrito Federal foi substituído pelo Rio de Janeiro (RJ). [2] A informalidade aferida nesta pesquisa se refere a indivíduos empregados sem carteira assinada (20,4%) e os empregados por conta própria (19,4%). [3] As reformas administrativas foram também adotadas pelos estados, porém de forma diversa quanto à sua abrangência e intensidade. Exemplificando, no Estado do Paraná todo o ensino fundamental foi municipalizado, enquanto que em outros Estados (São Paulo, Ceará, Santa Catarina) que também passavam por este processo a educação básica não passou totalmente a ser uma atribuição dos municípios. [4] Art. 144 da Constituição Federal.