Pesquise no Blog

Democracia no Brasil: um regime em consolidação


O desenvolvimento da democracia representativa e da participação pública na trajetória política do Brasil não é linear, mas pode-se dizer que em geral estão associadas, mesmo que a forma de ambas tenha se modificado no decorrer do tempo. Analisando o período republicano, no qual o regime democrático passou a ser adotado no país, observa-se que a democracia e as experiências de participação alternaram avanços e retrocessos. Em um primeiro momento na República Velha, período da história política nacional dominado pelo regime do “café com leite”, a existência de uma democracia no país era mais formal do que real, sendo que os pressupostos democráticos como a igualdade de voto, liberdade de opinião e a participação esclarecida não se efetivavam adequadamente. Isto era mais evidente nos rincões rurais brasileiros, em que uma elite invariavelmente ligada ao extrativismo agrícola, dominava a política através de um sistema conhecido por ‘coronelismo’. Um arranjo de poder caracterizado por acordos de favorecimento e troca de benesses políticas intra-elite, pelo patrimonialismo, a coerção mediante o uso da força, o estabelecimento de um reduto ou “curral” eleitoral, e a existência de um líder (o “coronel”) que normalmente era a pessoa que detinha maior poder econômico na região (LEAL, 1975).
Este período de fragilidade democrática das primeiras décadas da República foi sucedido pela Era Vargas, iniciada em 1930 com a ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da República mediante uma revolução militar. O Movimento tinha a perspectiva de romper com as mazelas da política do “café com leite”, mas tanto política, econômica ou socialmente, trouxe apenas avanços democráticos pontuais para o país. Tanto que em 1937, Vargas utiliza de suas prerrogativas governamentais para efetivar um novo golpe e implantar o Estado Novo, instaurando um regime ditatorial no país. Este momento da política nacional encerrou-se em 1945 com a deposição de Vargas pelos militares, com isto abriu-se espaço para que a democracia fosse novamente adotada. Tendo em vista os procedimentos, as forças e as manifestações políticas que eclodiram, o período compreendido entre o encerramento do Estado Novo e o golpe militar de 1964 pode ser considerado como o primeiro em que a democracia no Brasil se manifesta com suas características processuais mais marcantes[1]. No entanto, o pluralismo político que marcou o período trouxe também um cenário de conturbada disputa política, que aliada a outros fatores internos, como a fragilidade das instituições estatais, e externos, como a guerra fria, favoreceu a radicalização das posições e discursos políticos e uma polarização de forças que foram elementos decisivos para o fim daquela experiência democrática no país.
O golpe de 1964, além de marcar um retrocesso na trajetória da democracia no Brasil, evidenciava a realidade frágil do ambiente institucional, característico de um regime democrático ainda imaturo. É certo que o processo de consolidação democrática nacional passa pela necessidade de ordenamento institucional, processo este “matizado pelas dificuldades de se compatibilizar a dinâmica formal e social” (DOMINGUES FILHO, 2007, p. 60). A fragilidade das instituições políticas é recorrente na história brasileira, e certamente além de não impedir que regimes democráticos fossem substituídos por governos autoritários, também limitou o aprofundamento de experiências de participação. Sobre o mais recente processo de redemocratização iniciado com o fim do regime militar em 1985, ainda há divergências entre os estudiosos da política nacional se os empecilhos políticos e sociais para a execução plena da democracia e dos processos de participação foram ou estão sendo superados (MOISÉS, 2008, p.19).
Uma linha de interpretação que prevaleceu até meados da década de 1990, considera que o atual regime democrático ao ser estabelecido não foi capaz de romper com toda a estrutura institucional e política do regime militar. Tendo em vista que a restauração do governo civil ocorreu de forma progressiva e consensual, por meio de “acomodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas” (KINZO, 2001, p. 9). Esta forma de transição negociada propiciou a formação de um sistema político cujo padrão da qualidade institucional é considerado de baixa intensidade. Entre os fatores que corroboram esta interpretação estão, a existência de um sistema partidário altamente fragmentado, a incapacidade de o Congresso fiscalizar adequadamente as ações do Executivo, deterioração da relação entre representantes e representados, continuidade de práticas políticas clientelistas e patrimonialistas e a dificuldade de fiscalização e punição de atos de corrupção e improbidade administrativa (MOISÉS, 2008, p.19). Além de identificar fragilidades no aspecto institucional, evidenciam que a participação efetiva dos cidadãos no processo decisório democrático ainda carece de melhorias qualitativas, sobretudo no que se refere à superação da desigualdade social e econômica, o que tenderia a propiciar um acesso mais igualitário ao debate e aos espaços políticos (KINZO, 2001, p. 10).
No entanto há de se considerar que, apesar dos evidentes problemas no processo de redemocratização recente do país não se pode refutar que também existem evidências de uma consolidação democrática e de ampliação das experiências de participação, esta linha de interpretação tem ganhado força a partir de meados da década de 1990. Os adeptos desta abordagem, em contraposição aos que possuem uma visão de que o atual processo de redemocratização é frágil, enfatizam que o Brasil institucionalizou um sistema político centrado no Executivo e nas lideranças partidárias que possibilita a governabilidade e assegura a estabilidade do sistema político, mesmo que isto implique em uma limitação das funções parlamentares (MOISÉS, 2008, p.20). Aliado a este fator, a ampliação de formas de interação entre a administração pública e cidadãos verificada após a Constituição de 1988, também contribui para o fortalecimento da democracia brasileira.
Se por um lado o legislativo nacional e suas instâncias estaduais demonstram serem espaços com pouca penetração e influência do cidadão comum, cresce no país o número de experiências de democracia participativa e deliberativa, principalmente no âmbito local, propiciando uma aproximação dos indivíduos junto à gestão dos assuntos públicos. Há hoje no país uma considerável estrutura de participação, propiciada por iniciativas de orçamento participativo, conselhos gestores de políticas públicas e também pela implantação de planos diretores municipais, uma realidade bem diferente da cultura de baixa propensão associativa e de pouca representação social (sobretudo da população de baixa renda) verificada ao longo do século passado (AVRITZER, 2008, p. 44).
Analisando as experiências democráticas do país, o modelo de estudo democrático que porventura melhor se adapta e fornece explicações plausíveis para nossos processos políticos é o da Democracia Competitiva ou “Realista” (HELD, 2006, 125). Neste modelo a população em geral não estaria em condições de exercer o poder, tanto por razões emocionais como racionais, a alternativa estaria na existência de um aparato burocrático e institucionalizado para a escolha de mandatários, a quem caberia a realização do bem comum. No entanto os pressupostos teóricos deste modelo implicam na existência de um tipo de político raro em nosso país, o político por vocação no sentido weberiano, que vive “para a política” e não “da política”, aquele tipo de governante esclarecido e comprometido com os interesses coletivos.
A ausência deste tipo de mandatário e a corrosão da estrutura administrativa e política do Estado pelas práticas viciadas de governo, parecem contribuir para o crescimento de experiências de democracia participativa na história democrática do país nos últimos 25 anos. Parece correto afirmar que uma maior participação da sociedade no processo decisório e na definição das políticas públicas, em alguma medida inibe as ações nocivas de governantes mal intencionados. Esta possibilidade estaria limitada pela impossibilidade física de todos tomarem parte de toda a tomada de decisão, este aspecto, porém, não impede a adoção de mecanismos de democracia participativa para a definição de decisões sobre temas de grande abrangência e relevância, mas geram a tendência de que sejam utilizados com maior frequência para decidir sobre temas de caráter local e interesse restrito.
Ainda assim há de se considerar as fragilidades de aplicação do modelo democrático participativo à realidade brasileira. As exigências de participação esclarecida dos cidadãos para que o modelo possa ser utilizado plenamente, são difíceis de atender mesmo para democracias com populações com bons índices de instrução, no caso do Brasil em que há um déficit educacional crônico, a efetiva participação da sociedade civil no processo decisório fica longe de ser adequada. Um fator fundamental que pode contribuir para amenizar este quadro é a existência de um sistema aberto de informações, a fim de permitir a formação de opiniões mais embasadas. Este elemento é justamente o principal elo entre o modelo participativo e o deliberativo, os meios que atualmente possibilitam uma ampliação na difusão da informação, como a internet e as políticas governamentais de fomento da educação, também permitem a melhoria dos processos deliberativos.
No contexto atual da democracia brasileira tanto o modelo competitivo, quanto o participativo e o deliberativo, podem ser utilizados para analisar nosso regime, isto porque no Brasil não temos uma a aplicação “pura” de qualquer um deles. Como foi apresentado acima, os procedimentos sociais e políticos do país ainda não estão “maduros”, estão em processo de institucionalização e por isto não raro, encontramos pelo país experiências democráticas mistas. Circunstâncias em que os modelos são utilizados concomitantemente, ora se sobrepondo, ora se complementando. Um traço característico da história política brasileira, na qual as teorias e conceitos formulados no exterior não são plenamente implementados, mas sim, adaptados às particularidades do cenário político e social nacional.


Referências

            AVRITZER, L.; NAVARRO, Zander (Orgs.). A Inovação Democrática no Brasil. ed. 1, São Paulo: Editora Cortez, 2003.

            BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro, Campus, 2000.

DOMINGUES FILHO, J. B.. Planejamento Governamental e Democracia. 1. ed. Uberlândia: EDUFU - Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2007.

            HELD, David. Models of Democracy. 3ª Ed., California (USA): Stanford University Press, 2006.

            KINZO, M. D. G.. A Democratização Brasileira: Um Balanço do Processo Político desde a Transição. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 3-12, 2001.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Editora Alfa – Omega, 1975.

MOISÉS, José Álvaro. Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira. Revista brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 11-43, 2008.


[1] Segundo Norberto Bobbio os universais processuais que caracterizam a democracia seriam a maioridade etária ou ampliação do sufrágio, igualdade de voto, liberdade de opinião pessoal, oportunidade de escolha política entre diferentes opções, primazia do princípio da maioria e resguardo dos direitos das minorias (BOBBIO, 2000, pág. 427).